A legião: Fadas
- Doutor Leonardo
- 21 de ago. de 2019
- 7 min de leitura
Atualizado: 23 de ago. de 2019

Quando iniciei meus estudos sobre esquizofrenia, antes mesmo de começar a faculdade em São Paulo, já tinha uma ideia das variadas situações que me era possível encontrar em um paciente que tivesse a psicopatologia. Uma das situações era exatamente as alucinações e delírios, que podem variar de caso para casos. Em meus anos como psicoterapeuta nunca tive um paciente diagnosticado com a doença, mas já tive um paciente que afirmava, com toda a certeza, estar sendo perseguido por espiões da Alemanha que destruiriam sua vida. Não era esquizofrenia, e sim o TPP (transtorno de personalidade paranoide), causada pelo abuso de álcool e estresse pós traumático.
Ao conhecer Ana e seu psicodiagnóstico, fiquei interessado ao ler em suas folhas que lidaria com a esquizofrenia paranoide, e logo no começo de nossas sessões, Ana já apresentava sinais de ser uma pessoa muito bem articulada e expressiva, deixando bem claro que não tinha medo de ser "pega no flagra" observando ou ouvindo pessoas e coisas que eu não poderia ver ou ouvir. Com o tempo, Ana me apresentou suas alucinações diárias que indiquei como muito comuns, em relação a doença. Ela ouvia vozes, muitas falando sobre seu comportamento e sua vida, outras carregavam insultos que ouvira quando criança. E em suas visões, havia vultos, formas que se moviam no ar e cores "vivas" (literalmente). Todavia, Ana me apresentou suas alucinações mais frequentes, que eram exatamente figuras humanoides ou pessoas (crianças, em sua maioria). Mas, uma de suas visões, me causou um interesse maior, e nós só fomos conversar sobre elas em uma tarde de quinta-feira.
Quando decidi mudar a cor de minha sala para algo menos chamativo e colorido, o cheiro das tintas impregnou totalmente no local, ficando impossível de atender os pacientes sem ter uma crise de rinite ou dores fortes de cabeça por conta do aroma. Fui obrigado, então, a mudar meus pertences para a sala do último andar do prédio, onde havia várias plantas e flores em vasos nas prateleiras e janelas. Aquela era, antes, a sala de psicologia para casais, porém, a psicóloga havia tirado sua licença maternidade e me senti confortável em usar o local, ao menos por alguns dias, até que o cheiro de tinta deixasse totalmente meu consultório. No segundo dia na "sala nova", Ana tivera comigo uma sessão, e, quando guiada até o lugar, admirou-se com a quantidade de plantas e flores, soltando uma frase nada convencional (se é que alguma já fora): "Elas vão amar esse lugar." Questionei para Ana, então, quem eram "elas".
"Elas são minha legião extraordinária de fadas. Nunca consegui contar quantas são, mas sei que são mais de cinquenta."
Impressionado, começamos a falar sobre a tal legião de fadas. E para explicar como elas surgiram, antes, vamos entender a maior paixão da infância de Ana: livros.
Ana foi muito influenciada por livros quando era criança, por sua tia, irmã de seu pai. Seu gênero favorito era fantasia, livros que falassem sobre a mitologia e livros de suspense. Ana contou-me que aprendeu, quase completamente sozinha, a ler e a escrever com seu primeiro livro: Alice no País das Maravilhas. Ela dizia que no começo, quando sua mãe ou tia liam o conto, achava fantástico o reino da rainha vermelha, que tinha um exército de cartas, e depois, com o surgimento de figuras irreais em sua mente, ela se apaixonou por Alice ainda mais, pois agora, ambas tinham algo em comum: experiências com o incrível.
Ana conta que seu personagem favorito é o Chapeleiro Maluco e o gato de Cheshire (o gato risonho), alegando seus motivos: "Alice é, e sempre será, o livro que eu mais amei e amarei em toda minha vida. Vai muito além de um conto fantástico para animar crianças. Eu recordo de ler Alice e ouvir pessoas lerem, o quanto eu amava o fato de ninguém acreditar nela quando ela dizia sobre o coelho, e como ela mesma demorou para crer que fazia parte de um mundo paralelo ao seu. O Chapeleiro Maluco é altamente extrovertido e alucinado, te lembra alguém? É tão especial e único ler o livro e ver os filmes e animações e notar a mudança de mente do Chapeleiro, como todas as coisas em seu passado contribuíram para a evolução de sua loucura. Ele é maluquinho, maluquinho. E o Gato de Cheshire é apenas o ser mais fantástico do livro, todo sarcástico e irônico, ele é quem dá o toque especial nas páginas. Eu queria muito que ele fosse a minha alucinação." Fascinado, Ana seguiu contando dos livros que lia quando pequena, dizendo que ela não era fã de livros de princesa ou contos fantasiosos que "não faziam sentido". Ela comentou que quando começou a ler, procurava coisas que não faziam parte do universo comum de uma criança, como livros de filosofia, por exemplo. Ela também conta que, mesmo amando os contos sobre fadas e sereias, sempre achou que os livros para crianças transformassem criaturas surreais da mitologia em pessoinhas fofas e bonitinhas. "Fadas e sereias não são bonitinhas e meigas, elas são seres selvagens como qualquer outro. Aquilo que vemos em Tinkerbell e Ariel são uma completa mentira. Fadas e sereias não querem sua amizade, elas vão matar você."
Com isso, então, perguntei sobre a sua legião de fadas, e Ana se animou ao contar-me tudo o que sabia e lembrava. Assim, descobri que as fadas surgiram quando Ana ainda tinha onze para doze anos, ou dez para onze, ela não tem certeza absoluta. Ana tinha muita vontade de ver e ter contato com seres mágicos. Ela não acreditava que veria sereias, fadas ou duendes, até o dia que fora viajar para um sítio e brincou até tarde com a primas no pequeno bosque atrás da casa. Ela conta, maravilhada, que brincava de se esconder quando enxergou um tipo diferente de inseto em seu campo de visão: "Era muito feio e esquelético, achei que seria o famoso 'bicho-pau', mas não lembrava se eles tinham ou não asas. Foi então que minha fixa caiu: aquilo não era um inseto! Era uma fada." Ela correu contar para a mãe e as tias, e lembra-se de ouvir seu padrasto dizer que no reino dos insetos, o bicho-pau tinha diferenças entre macho e fêmea e contou que os machos eram pequenos e tinhas asas, então, ela não estaria vendo uma fada, e sim um inseto. Ana teimou que estava vendo fadas, e na sua mente infantil, acreditava fielmente que os seres mágicos queriam a ajuda dela para algo, neste caso, a mente de Ana ficou tão obcecada pela alucinação, que criou milhares dela ao longo dos anos.
Ana diz que a visão das fadas é totalmente inofensiva, e que ama vê-las. "Eu sei que não deveria gostar disso, mas é inevitável. Eu vejo fadas!" Ela comentou que muitas vezes a alucinação visual de fadas a tirou do completo tédio, e que até hoje ela brinca com isso. "Quando criança eu amava seguir elas para ver até onde eu poderia ir. Geralmente eu acabava no quintal de casa ou no jardim da escola, então entendi que elas gostavam de plantas e flores. E, admito que até hoje eu brinco de seguir alguma delas. Eu sei que tenho uma doença, mas acho que para melhor, eu não preciso ignorar a doença, e sim aceitar que eu tenho ela. E, talvez, eu tire muito proveito disso." Impressionado, segui com minhas perguntas sobre as Fadas e Ana contou que elas não são nada parecidas com as dos livros infantis.
"Fadas não são mini humanos com roupinhas de folha e cabelinho hidratado. Isso nem sequer faz sentido." Achei graça no fato de uma garota esquizofrênica querer argumentar sobre o que fazia ou não sentido, e ela prosseguiu: "Desde criança sempre soube que fadas não eram garotinhas de asas, e sim seres selvagens da mitologia." Neste caso, as fadas de Ana não são fofas e usam vestidos, elas são esqueléticas, escuras e, como ela mesma disse, "muito feias e podem ser assustadoras."
Mesmo que a esquizofrenia derive de traumas, as fadas de Ana não lhe causam medo ou receio, a paciente ainda diz que, dentre todas as alucinações, elas são as melhores de se ver. "Todos os dias pela manhã, quando vou ao colégio, passo por uma igreja que tem um grande bosque atrás, e é surreal ver a quantidade de seres por lá. Na minha sala de aula também vejo, e elas gostam de provocar meus colegas de turma, mesmo que eles não as vejam. É uma graça quando elas sentam nas mesas e me olham como se implorassem para que eu fizesse algo com elas. Eu queria muito poder ter a liberdade de falar com elas ou rir de suas gracinhas, mas já sou estranha demais." Mesmo que as fadas não falem uma língua que Ana possa entender, ela diz que muitas vezes é fácil de adivinhar o que elas querem. "Elas apontam para a janela quando querem ir para fora." O fato nos diverte e Ana diz que, mesmo com o tratamento, ela sempre força sua mente a não se desfazer das fadas e dos outros seres mágicos que ela pode ver. Alegando que o mundo real é muito chato, e sua mente torna-o mais divertido.
"Eu quase nunca fico entediada. Sempre tenho algo para ver ou fazer por conta da doença. As pessoas dizem que sentem pena de mim, a realidade é que eu sinto pena delas. A cabeça delas é tão chata e monótona. Eu posso ver fadas e duendes, um passeio na floresta se torna uma caça à faunos, passarinhos coloridos sempre estão nas minhas janelas. Enquanto vocês vivem um dia chato e sem graça, eu me divertido com criaturas mágicas. Esquizofrenia pode ter seus baixos e profundos, mas nada tira de mim o fato de que eu simplesmente amo minha capacidade de viver dentro de um conto incrível. Pelo amor de Deus, eu vejo fadas! Quer algo mais legal do que isso?"
Para os pacientes é importante a convivência com a doença. Esquizofrenia não tem cura, tem controle. E me sinto muito orgulhoso ao ver o quanto Ana amadureceu em relação à doença. Como ela mesma disse, para que haja uma melhora ela não precisa ignorar o que tem, e sim aceitar que tem. Talvez, seja um grande ensinamento.
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