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O meu nome é Depressão

  • Foto do escritor: Doutor Leonardo
    Doutor Leonardo
  • 23 de ago. de 2019
  • 8 min de leitura

Após conhecer as várias faces de Ana por desenhos antes de conhecê-las pessoalmente, procurei em casa por alguns personagens de suas alucinações ao qual ainda não tinha sido apresentado, e entre milhares de folhas de papel, achei uma que atingiu meu interesse maior. Era um pouco amassada e continha uma atividade escolar atrás, me fazendo deduzir que era uma folha arrancada de um caderno. Entre as linhas azuis da folha estava o desenho de uma figura alta, de corpo que não pude definir entre homem e mulher, tinha um rosto comum. Acima de sua cabeça estava a palavra "depressão", igualmente Ana fizera em todos os outros desenhos. Aquele era o nome da figura. Ela se chamava Depressão.


Em uma sessão, questionei Ana sobre quem era Depressão, e ela me contou mais uma de suas longas, trágicas e fascinantes histórias. Assim, descobri que Depressão é fruto da real depressão que Ana passou após a morte do pai. Ana engajou em uma profunda depressão antes mesmo de sair de sua fase como criança, sendo uma garotinha de 8 anos que já sofria os sintomas da doença. Essa é uma parte sensível de Ana. Ao mesmo tempo que ela se coloca como uma pessoa muito aberta, hoje em dia, para falar de suas tragédias emocionais, ela sempre diz que falar sobre a depressão nunca fora e nunca será algo realmente fácil e simples, ou objetivo. Especialmente ao tocar no assunto "suicídio". Essa conversa foi uma das primeira que eu e Ana tivemos, afinal, ela chegou ao meu consultório com a mente desgastada e um desejo crescente por parar de respirar. Mal consigo contar quantas vezes Ana já chorou, dizendo aos soluços que ela não aguentava mais abrir os olhos pela manhã. Era uma depressão profunda que me assustava, afinal, como médico, também prezo pela vida de meus paciente, e detestaria perder Ana.


Conversei com a mãe de Ana, Maria, e ela me contou que após o pai falecer, Ana se transformou em uma figura completamente diferente. Ela mal falava, não tinha vontade alguma de fazer as atividades de casa ou da escola, e nem sequer gostava de sair para passear, afirmando que se o pai não estivesse junto, então ela também não estaria. Maria ficou preocupada, mas estava tão ocupada com sua própria mente abalada que deixou Ana de lado, o que se torna totalmente compreensível. Enquanto Ana não tinha vontade alguma de fazer algo, Maria depositou toda a tristeza, a raiva, todo o luto no trabalho, ficando manhã, tarde e noite fora de casa, obrigando-a colocar Ana em um colégio de período integral para que não ficasse sozinha em casa por tantas horas. Como, naquela época, a avó de Ana ainda era católica, ela foi para um colégio que seguisse a religião, e lá fez algumas amigas, e até um primeiro amor, mas isso é história para outro dia. Maria então focou-se tanto no trabalho, e no domingo à igreja, que Ana sentiu-se solitária e desprovida de amor. E antes de prosseguir, precisamos pausar aqui para uma fala importante.


Maria, mãe de Ana, também estava passando pela depressão. Essa doença em questão se manifesta de muitas maneiras. Depressão não significa apenas "estar triste" e "não sair da cama". A depressão pesa em várias áreas de nossa vida, e em Maria, pesou em seu trabalho. Ela viu o emprego como uma fuga para os sentimentos que a corroía por dentro. Óbvio que ela sentia-se triste, com raiva, indignada e frustrada. Imagine você, com seu parceiro(a). Vocês se conhecem quando jovens, se apaixonam, assumem um namoro, decidem noivar, casar e ter filhos. Planejam toda uma vida, compram uma casa, pintam o quarto do bebê, adotam cachorros, fazem escolhas para viagens em família. Há mais no amor do que apenas beijos e abraços, há compreensão, compaixão, empatia, discussão, decisão, escolhas, ações, virtudes. É toda uma vida enlaçada em duas almas, duas mentes. Agora pense que esta pessoa, o amor de sua vida, que você dá "bom dia" pela manhã, que você brinca enquanto cozinham juntos, que você perdoa quando discutem, que você fala encantado quando te perguntam "ei, como vai seu(sua) parceiro(a)?", simplesmente, vai embora. Pense com si mesmo, em seu canto agora, como é acordar pela manhã ao lado de quem ama, tomar café juntos, almoçar juntos, dizer um eu te amo antes dele sair de carro para comprar um presente, para ir ao trabalho, para ir ao mercado, e de repente pela noite, uma chamada telefônica te diz que essa pessoa, o amor de sua vida, a quem você entregou seu corpo e alma, quem você viu crescer ao seu lado, quem se ajoelhou para te pedir em casamento, quem te fez juras de amor, está morta? Ela está morta. Ela não vai voltar para te abraçar, ela não vai voltar para dizer que te ama e pegar nas suas mãos enquanto assistem TV juntos. Ela nunca mais irá voltar.


Maria amava o pai de Ana, tanto quanto ama Ana. Foi uma fatalidade comum hoje em dia, um acidente de transito num dia de chuva. Mas não um acidente comum. Proposital. Ele queria causar o acidente, ele quis causar a fatalidade, ele ansiava por ela há anos. Eu queria ter tido a chance de conversar com esse homem. Quando Ana contou-me sobre seu pai, eu pensei o que muitos pensam: "como um marido, pai de família, tem coragem de tirar a própria vida e deixar esposa e filhos para sofrer?". Nós pensamentos tanto em quem fica, que esquecemos da dor de quem foi.


É comum termos sentimentos de raiva e indignação ao saber de um suicídio. Carregamos milhares de pensamentos como: "Essa pessoa não pensou em seus amigos e família? Não pensou em como os outros se sentiriam com sua morte? Que egoísmo." Acontece que, o pensamento talvez devesse ser ao contrário. O suicida certamente pensa em seus amigos e família, mas e os amigos e família? Eles pensam no suicida? Existe uma frase que diz "só quem passou, entenderá de fato." E essa frase não está errada. É claro que, quando ajudamos alguém com problemas, não precisamos ter passado ou nos forçar a passar pelo fato, mas precisamos de algo chamado "empatia". Colocar-se no lugar do outro. Você pode, sim, colocar-se no problema de outra pessoa, só não pode permanecer nele. Esse é o fato do suicídio. Nós nunca acabaremos com ele pensando como quem está do lado de fora, precisamos pensar como quem está do lado de dentro. Falar a um suicida que ele precisa "pensar na família, pois ela vai sofrer" não vai impedir que ele cometa a morte, e em muitos casos, pode até adiantá-la. Se ele quer se matar, significa que, mesmo pensando na família e amigos ou no cachorro de estimação, o sentimento de morte ainda é o que se eleva mais. Porque o suicídio vem, do mais comum, com o sentimento de inutilidade, vergonha, fracasso e impotência. A pessoa vai sentir-se realmente como um 'nada'. Ela não vê mais um sentido para estar viva. Nem seus pais, nem seus amigos, nem a escola, o emprego ou a faculdade são o suficiente. Na verdade, todas essas coisas só desgastam e perdem a importância com o passar dos anos preso na depressão. Por isso nós precisamos ser apoio, peito que acolhe, para esses casos. Tudo bem se você não souber o que falar, é realmente difícil saber. Mas sempre tenha em mente que a primeira opção é aconselhar o depressivo a uma terapia, à um psicólogo ou psicoterapeuta. Mesmo que ele diga "não", o seu dever deve ser impor o "sim". Essa decisão deve vir antes da religião ou "espiritualidade".


Não sendo rude. A religião ajuda sim em casos como esses, afinal, a fé, a esperança, o otimismo também ajudam no tratamento mental. Mas devemos parar de colocar os Deuses sempre em nossa primeira opção. Você está ao lado de alguém que quer, literalmente, morrer. Você realmente acha que ela precisa do seu Deus para querer continuar viva? Não. A sua resposta precisa ser 'não'. Depressão não é falta de Deus, falta de espiritismo, falta de contato com a natureza e afins. Depressão é doença. Doença causada por feridas, por traumas, por mágoas, por uma família sem estrutura, pelo bullying, pelo abuso, pelo estupro, pelo luto, doença causada por pessoas doentes. Suicídio não é egoísmo pleno. Egoísmo é você pensar apenas em sua dor por perder alguém que precisava que você entendesse a dor dela.


Voltamos então em Maria, mãe de Ana. Ela estava tão presa em sua mente abalada, que Ana ficou para trás. Neste caso então, Ana criou a Depressão. Uma de suas personalidades.


Quando tive a oportunidade de conversarmos, Depressão contou que não se identificava como masculino ou feminino, ela (a identidade) era apenas um fragmento de Ana, e eu estava fascinado com tamanha racionalidade. Depressão carrega centenas de sentimentos negativos, é muito quieta e gosta de me ouvir falar, alegando que: "Eu ouço vozes irreais o dia inteiro. É bom ouvir alguém que esteja realmente aqui." Em seu geral Depressão é uma identidade pacífica, amorosa e muito carinhosa, o que é surpresa para mim. Confuso, trabalhei com a hipnose em Ana para falar mais com Depressão, e descobri um fator interessante: Depressão não é aquilo que Ana tinha, e sim o que deixou de ter. Ou seja, mesmo que a personalidade carregue sentimentos ruins, não é nada incomum, já que todas as outras carregam, mas Depressão transborda tudo o que Ana precisou ter e não teve. Ela transborda amor, empatia, apoio, compaixão, amizade, lealdade, confiança e gentileza. Tanto que, enquanto conversávamos, admito que muitas vezes sorria como um bobo, encantado com uma 'pessoa' tão adorável. Depressão, geralmente, gosta de inverter os papeis quando estamos juntos. Ela senta e pergunta: "Como está?" e eu conto pequenos fatos do meu dia-a-dia, para então ela começar a falar. Ela me elogia, sorri abertamente, tem uma voz mansa e carinhosa, e em uma conversa com a estagiária certa vez, esta mesma me disse que: "Eu tenho muita vontade de abraçar sua paciente. Ela reflete tudo de bom." e eu tive que concordar. Depressão é um ser extremamente amável.

Mas, como nem todas as coisas são flores, Depressão também tem seus altos e baixos, e baixos profundos. E uma dessas coisas é sua relação com Maria. Depressão e Maria não se dão bem, carregando sentimentos de remorso e culpa. Depressão contou-me que nunca aparece em casa, pois não gosta de dividir espaço com Maria, a mulher que privou Ana de tudo que ela mais precisou em seu pior momento. Expliquei que Maria foi uma mulher criada numa família rígida, que também estava em tratamento e também precisava de um tempo até compreender os próprios sentimentos, e mesmo assim, Depressão afirmou que não era uma personalidade obrigada a conviver com quem não contrubuía para o progresso de Ana.


Hoje em dia, Ana e Maria tem uma bela convivência. Mãe e filha, que passaram por tantas dores, tantos traumas, finalmente conseguiram achar um laço que as juntasse. Hoje elas se divertem juntas e são melhores amigas, e Ana afirma que se sente orgulhosa por ter continuado viva para ver o crescimento da mãe, e diz, animada, que finalmente tem uma mãe de verdade.


Tive uma conversa especial com Maria para este estudo, e ela contou que: "Eu sempre tive receio de ter uma filha doente. Eu nunca aceitei que tinha uma filha diferente das outras crianças, e entendo que fiz parte dos milhões de motivos para que ela ficasse tão mal. Hoje eu me culpo por não ter feito um bom papel como mãe, e agradeço que Ana me perdoe por tantos anos privando-a de uma vida melhor, ou uma relação mais estruturada comigo. Eu amo minha filha. Desde a primeira vez que a segurei nos braços, aqueles olhinhos pretinhos me encarando, aquele sorriso de bebê, direto para mim. Eu me apaixonei naquele momento. Eu sinto muito por não ter sido a melhor mãe do mundo para Ana. Mas agora, não existe nada no mundo mais importante que a saúde da minha filha. E ela continua sendo minha menina. Eu também brigo com ela às vezes, tratando-a como uma adolescente normal, porém não tanto. Até comecei uns estudos sobre esquizofrenia e TDI para podermos ter mais assuntos sobre isso com a família. Ana não é uma coitadinha, eu sei disso. Ela é a minha filha, e é a pessoa com a mente mais incrível que já conheci. Ela é inteligente, quer fazer faculdade, trabalha, tem amigas, consegue viver em sociedade. A doença não é um motivo para ela deixar de fazer o que gosta. E esse sempre será o meu maior orgulho."


Neste caso, hoje concluímos que, mesmo que Maria e Depressão não sejam boas amigas, Ana e Depressão sabem coexistir juntas, assim como Ana e Maria. Como eu disse, amor não envolve apenas abraços e beijos.

 
 
 

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