Agatha
- Doutor Leonardo
- 19 de ago. de 2019
- 6 min de leitura

Antes mesmo que eu conseguisse firmar meu cérebro a cuidar de três identidades distintas em uma mesma mente, em uma sessão de psicoterapia fui apresentado a uma simpática garotinha chamada Agatha. Eu nunca fui acostumado a lidar com crianças, tanto que nunca foi de meu desejo ter filhos ou trabalhar com a psicologia infantil, porém, para a minha surpresa, com Ana, não só lidei com uma adolescente, como com dois adultos, e para meu espanto, duas crianças (Ana ultrapassa todos os meus limites).
Eu lembro de estar muito cansado naquela tarde de quinta-feira quando Ana chegou, sempre acompanhada dos pais, e fui recebê-la. Logo de início notei algumas diferenças em seu comportamento: ela estava acanhada e tímida, seus olhos observavam tudo na clínica, como se nunca tivessem visto aquelas pessoas ou aqueles objetos antes. Notando a hesitação da parte dos pais, me aproximei com cautela, vendo Ana se afastar e esconder-se atrás do padrasto. Neste momento toquei-me que estava lidando com uma criança diferente de Rebecca, que era tão extrovertida e cumprimentava todos na clínica. Lembro das palavras de sua mãe, vagamente: "Acho que o nome dela é Amanda. Algo assim." Como me vi de frente com uma criança novamente, fui extremamente gentil, medindo todas as minhas palavras e acompanhando a, até então, "Amanda", até minha sala.
Antes de chegarmos à porta do meu consultório, passamos pelo corredor onde a Doutora Rose atendia crianças especiais e aplicava psicologia familiar, uma sala cheia de brinquedos, paredes coloridas e papeis para colorir. Como um bom estudioso, me encarreguei de pegar algumas das folhas com desenhos para colorir e peças de lego. Ao entrarmos no consultório, me espantei levemente ao ver a "Amanda" sentar-se no chão, exatamente como uma criança faria. Dei para ela os legos e os papeis de colorir e fui até a cadeira, observando-a por um tempo. Ela coloria a folha de modo errático, assim como uma criança, expressando com o corpo manias totalmente infantis. Decidi então, que já era hora de conversarmos um pouco. Minha primeira pergunta fora seu nome, e quase ri ao saber que era Agatha, e não Amanda. Questionei sua idade, validando se meu palpite estaria correto, e quase acertei: ela tinha cinco anos.
Calmamente falamos sobre coisas que ela gostava e não gostava, descobri então que Agatha tinha medo de chuvas fortes e amava pássaros, me contando que sua ave favorita era o canário, o famoso "passarinho dourado". Sua maneira de falar era muito calma e seu alcance vocal era extremamente agudo, se assemelhando muito ao de uma criança de cinco anos. Agatha também me contou que nunca teve a oportunidade de sair de casa e que seu maior sonho era ir a um cinema, mesmo alegando que não fazia ideia do que fosse um cinema. Logo então, questionei se ela entendia o que estava acontecendo e se ela entendia quem era. Sua resposta não podia ser mais correta: "Eu sou a Agatha, oras." É claro que uma criança de cinco anos não poderia responder questões sobre doenças psicológicas, mas por se tratar de um fragmento mental, eu esperava algo menos objetivo. Expliquei para Agatha que ela era uma pessoa vivendo na mente de outra pessoa, expliquei também sobre Senhor Medo e Senhor Pânico, e fiquei surpreso ao notar que ela já fazia ideia da existência das outras personalidades.
"Tio Medo é muito chato." Eu não sabia se havia ouvido direito, mas achei fascinante o fato de Agatha olhar para mim pela primeira vez, e por mais alucinado que possa parecer, eu jurei à mim mesmo que aqueles olhos passavam toda a inocência de uma criança. Eu senti-me com uma criança na sala. Seu rosto podia ser o de Ana, mas eu tive plena certeza de que eu estava lidando com uma garotinha de cinco anos que nem sabia escrever ou falar palavras dificeis como "paralelepipedo". E essa foi a sensação mais estranha de toda a minha carreira.
Você deve estar se questionando de onde Agatha surgiu, certo? Conversando com o antigo psicólogo de Ana, doutor Fernando, descobri que nem mesmo ele havia conseguido a informação necessária para descobrir qual trauma ou qual fator havia levado Ana à criação de Agatha. A criança não apresentava nenhum comportamento que revelasse abusos ou agressões, ela foi tímida no começo, mas logo se tornou extrovertida, como uma criança "normal". Nenhuma de suas histórias contavam tragédias emocionais, ela apenas tinha medo de chuva. Por longos dias me perguntei se o medo de chuva não era um trauma indireto, porém, ao conversar com Ana, esta me disse que não havia nenhum duplo sentido na palavra chuva, e que até ela sentia medo de ventos e trovões, neste caso, chuva era apenas chuva, e o medo era racional para uma criança de cinco anos.
Conversei com Agatha durante dois meses, e em um deles decidi abrir um espaço em meu consultório apenas para ela. Com uma sala espaçosa, reorganizei os móveis e o tapete, criando um espaço acolhedor e infantil, cheio de brinquedos que consegui nas doações entre minha família, e livros de colorir que comprei por menos de dez reais no centro. Com o tempo, descobri um fato realmente importante sobre o TDI e a esquizofrenia. Talvez não seja a descoberta do século, todavia é de extrema importância que mais pessoas saibam.
Ao lidar com uma pessoa que desenvolve a esquizofrenia ou/e o TDI, é importante que saibamos com o quê e com quem estamos lidando. A pessoa com esquizofrenia pode se perder facilmente entre uma realidade e outra, deixando a mente ainda mais confusa de como se deve agir, especialmente em locais com público como centros de compras, escolas, faculdades, trabalho, igrejas, eventos em geral. É importante que saibamos lidar com uma realidade distinta da nossa, e para isso, é necessário muita empatia, paciência e compaixão. A esquizofrenia não tem cura, é uma doença permanente, e o portador não tem culpa de tê-la, mas nós como parentes, amigos ou namorados, ou apenas colegas, temos o dever de entender a realidade do portador. Cabe a nós criarmos um ambiente inclusivo para que o portador sinta-se a vontade para socializar. Afinal, creio que ter uma doença que joga vozes horríveis em sua mente o tempo inteiro seja o suficiente para o desenvolvimento de uma depressão crônica e tendências suicidas, neste caso, um pouco de empatia pode salvar uma vida. Inclusão é fundamental no ramo das disfunções mentais. O portador não precisa sentir-se mais isolado do que o habitual, e nós podemos mudar o fato, incluindo-o em nossas atividades do dia-a-dia.
Assim também com o TDI. Você precisa ter o conhecimento das personalidades. Foi exatamente o que fiz ao conhecer Agatha. Ela tem apenas cinco anos, fica entediada facilmente, uma sala cheia de livros de filosofia, sem cor alguma e repleta de papeis de estudo não me parece o ambiente onde uma criança ficaria à vontade para conversar. Não estou pedindo para você criar um ambiente desses loucamente em seu local de trabalho ou sua faculdade, mas tenha elementos em mãos que ajudarão na identificação das personalidades e que auxiliarão em como lidar com as mesmas. Diante disso, criei um espaço infantil, para poder incluir Agatha em minhas sessões. Hoje, quando ela é a identidade dominante, sentamos no canto da sala, sobre os tapetes e enquanto faço perguntas e explico tudo o que acontece dentro de sua cabecinha, Agatha brinca de colorir, de arrumar o cabelo de bonecas ou montar casinhas de lego. Além de quê, com a ajuda de minha esposa, conseguimos inventar uma sessão de histórinhas sobre a depressão, ansiedade, abuso sexual, físico, a esquizofrenia e o TDI, que são contadas por meio de fantoches que representam as personalidades de Ana, um deles sou eu e um deles é a própria Ana. Dessa maneira, descobri que Agatha carrega em si um forte sentimento de rejeição e abondono, e junto com Ana, estamos tentando descobrir de onde esse sentimento surge, pois ele não nos leva até o luto e muito menos até o abuso cometido pelo tio.
Ou seja, este post ao qual você lê hoje, muito provavelmente, em algum dia, será atualizado com novas informações sobre Agatha e Ana. Algumas das personalidades já foram totalmente desvendadas, por serem consequências de traumas passados ao qual Ana tem lembranças e total conhecimento, mas o TDI não para, e assim como Agatha, ainda temos uma longa lista de identidades que surgiram recentemente, como nossos amigos do próximo post: Angústia e Ira.
A psicoterapia não dorme, assim como a mente de Ana. Deixo aqui então meus sinceros "até breve". Ou como diria meu caro amigo, Senhor Pânico, see you!
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