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Senhor Medo e o TDI

  • Foto do escritor: Doutor Leonardo
    Doutor Leonardo
  • 15 de ago. de 2019
  • 6 min de leitura

Atualizado: 19 de ago. de 2019



"Pode-se definir o transtorno como uma condição psicológica severa em que aspectos importantes como memórias, comportamentos, sentimentos e a própria identidade são afetados. O TDI se configura como um processo mental dissociativo responsável pela falta de conexão ao que a pessoa traz em sua personalidade ‘real’." Você certamente já ouviu falar de alguém que possuía dupla personalidade, e tenho quase certeza que já viu ou ouviu falar sobre o famoso filme de Hollywood, "Fragmentado", ou até mesmo, no não tão famoso filme, "Alice & Frankie". Ambos os personagens possuem uma característica em comum: a presença de duas ou mais identidades vivendo dentro de seu corpo "verdadeiro". O TDI é uma rara condição psicológica que não chega a afetar nem 150 mil pessoas da população brasileira,


Os transtornos dissociativos aparecem com frequência como consequência de um fato traumático. Muitos dos sintomas são influenciados pela proximidade com o trauma. Geralmente se denomina trauma psíquico ou trauma psicológico tanto a um evento que ameaça profundamente o bem-estar ou a vida de uma pessoa quanto à consequência desse evento no aparato, na estrutura mental ou na vida emocional da mesma. Em 2017 uma reportagem divulgada pela BBC, em junho, relatou a história de Melanie Goldwin, cujas declarações revelam a existência de personalidades distintas em sua vida. Segundo a matéria, a identidade de Melanie alterna ora como uma criança de 3 anos de idade ora como uma garota de 16 anos vivendo o auge da adolescência. Além disso, a inglesa pode externar as angústias de uma pessoa que sofre com anorexia e tendências suicidas.


Quando tive meu primeiro contato com uma paciente de nível mental abalado mais profundo, esperei ansioso para começar a relatar e estudar tudo de novo que conseguisse encontrar diante do ser que sentava todas as quintas-feiras em frente a minha cadeira. Por meses conversamos sobre suas alucinações corriqueiras e seus delírios constantes, e admito que parte de mim esperava por um contato maior com tudo isso.


E então, no mês de Janeiro de 2018, recebi uma importante ligação da mãe de minha paciente, desesperada pois a filha havia tido um "surto comportamental" ao qual ela não sabia quem "estava no comando". Chocado com o fato, no dia seguinte agendei uma consulta de emergência e fiquei cara-a-cara com a paciente. Ela parecia normal, sem lembranças do dia anterior, e ousou dizer que "sempre acontece. Nunca sabemos o que fazer". Eis então, que ao conversar com meu antigo amigo da clínica da Grande São Paulo, ele me alertou sobre a terapia de hipnose, feita por um especialista na área, que ajudaria a solucionar o misterioso caso da troca abrupta de identidade. Foi então que, como recomendação, o espaço terapêutico recebeu minha paciente para uma sessão de 1 hora de hipnose. Os resultados não foram os que eu esperava, e durante todo o processo ouvimos histórias já antes contadas, até a chegada de uma nova especulação: "O nome dele é Medo, ele é quem comanda". Muito aflito, recorri a estudos constantes de seu diagnóstico já dado: o TDI. Aprofundando-me no assunto, decidi que já estava mais do que na hora de conversarmos sobre essa parte tão alucinada da mente humana.


E então, num próximo encontro, num dia chuvoso onde era claro seu nervosismo, e também o meu, ela iniciou sua fala:


"-Eu não lembro quando comecei a ter essas 'recaídas' de personalidade. Em um dia eles eram apenas visões, e no outro eles estavam me consumindo. Nunca tive controle sobre eles ou sobre a criança, simplesmente acontecia, e com o tempo, mesmo com os remédios e terapias constantes, ainda acontecia. Tudo o que eu e o Doutor Fernando conseguimos, durante um ano, foram as identidades de três novos fragmentos: Agatha, Angústia e Ira."


Atordoado e fascinado, decidi que também gostaria de conhecer as outras partes da paciente, e assim, iniciei minha primeira sessão de psicoterapia com o que antes era apenas uma alucinação.


Senhor Medo

Quando ela tinha apenas sete anos, o pai faleceu de forma traumática e repentina, deixando-a sozinha com a mãe em uma casa longe dos outros familiares. Acostumada com o contato do progenitor, a falta do homem causou na mente infantil o que chamamos de fato psicológico traumático. Ela retraiu sentimentos, falas e expressões, obrigando a si mesma a afastar-se da mãe e dos colegas do primário. Isolou-se. É completamente normal que crianças criem formas distintas de defenderem-se de traumas, muitas se isolam, outras explodem, acarretando em teimosa constante, dando a si mesmas uma pose "durona". Para isso temos a psicologia infantil. O único problema dessa criança em questão, fora que sua responsável não achou que era necessário uma "abordagem tão séria" para lidar com o luto. E as coisas apenas pioraram quando a criança começou a ver e ouvir um ser imaginário que ela mesma intitulou de "Senhor Medo".


Senhor Medo nada mais é do que a figura masculina que a mente infantil precisava, e seu nome não deriva do fato dele ser um monstro assustador, é muito mais abrangente. O medo não está na aparência da figura, mas sim, nos sentimentos que ela carrega. O medo de ficar sozinha, o medo do abandono, da perda, o medo de aceitar que o pai havia partido, o medo da solidão, medo do choro, da dor, do sofrimento. Todos esses medos em uma mente infantil resultaram em sua forma de defesa, a criação de alguém que carregasse todos esses sentimentos, na esperança de que ela mesma não tivesse que os carregar.


Senhor medo é a figura de um homem alto, sem face, com dedos longos e uma voz irritada. Ele carrega um ar superior, narcisista e prepotente, em todas as vezes que nos vimos nunca me olhou de cabeça baixa, nunca sorriu e nunca referiu-se a si mesmo como uma pessoa. Ele sempre fora, e sempre será, um fragmento.


Nos vimos pela primeira vez em fevereiro, em uma noite de quinta-feira. Eu mal podia esperar pela paciente, quando ela chegou de um exaustivo dia de colégio e trabalho. Porém, algo estava diferente. Seu semblante estava sério, apático, e seu andar estava calmo e firme. Ela sentou-se elegantemente na cadeira e não abriu a boca nenhuma vez. Não havia nenhuma novidade que ela quisesse contar, o que era incomum, pois todas as semanas sua primeira frase era "adivinha! Eu vi/ouvi/li/conheci/aprendi", e naquele dia o silêncio se tornou ensurdecedor.


Ficamos apenas nós dois na sala, esperei calmamente até que ela começasse a falar, e quando finalmente aconteceu, arrepiei-me por inteiro.


Sua voz não era mais alegre, oscilando entre grave e agudo. Era apenas grave, como se já estivesse em sua fase adulta. Uma maneira sutil (ou não) de assemelhar-se à voz masculina. Sua fala foi direta, simples, usou palavras bonitas para me questionar o óbvio. "Creio que não saiba meu nome, ou quem sou, hm?." E eu realmente não sabia, não havia como saber. Parte de mim achava engraçado o fato de uma garota baixinha de dezesseis anos falar comigo como uma adulta mulher inglesa, cheia de elegância e frieza. A outra parte de mim estava em choque.


Senhor Medo diz ter idade para ser pai, um homem sincero e educado. Entre milhares de suas peculiaridades, a maior e melhor delas, é como ele tem habilidade para tocar o violão. Instrumento que o pai da paciente também utilizava.


É comum, em casos de TDI, que as identidades saibam de coisas que outras não saibam. Um exemplo básico é a preferência por comida ou matérias. Enquanto uma personalidade gosta de carne, a outra se declara vegana, se temos uma personalidade que detesta matemática, a outra quer até mesmo fazer faculdade de exatas. Podendo variar de caso para caso, e neste em especial, a paciente sabia tocar apenas teclado, e sua personalidade nunca soube apertar teclas, mas sabia muito bem tocar clássicos em um violão, conhecendo todos os acordes, notas e compondo até mesmo uma própria canção.

Senhor Medo e eu nunca tivemos uma boa proximidade, e com o tempo descobri que ele era totalmente contra todas as coisas que eu falava, diferente da paciente original, que sempre concordava com a maioria de meus conselhos.


Senhor Medo ainda é uma incógnita para meus estudos. Ele é silencioso e misterioso. E diferente do 'habitual', ele não se declara como uma identidade fixa. Ele sabe do motivo de sua existência, e até ousou dizer-me que "se tenho nas minhas mãos o comando, é óbvio que irei tomá-lo". Um homem astuto e, talvez, não sempre, arrogante. O primeiro de todos, e meu segundo paciente.



 
 
 

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