O Fauno Solitário
- Doutor Leonardo
- 28 de ago. de 2019
- 5 min de leitura
Atualizado: 29 de ago. de 2019
"Eu tenho muitos nomes, nomes antigos que só o vento e as árvores são capazes de pronunciar. Eu sou o monte, o bosque e a terra. Eu sou um fauno, o mais humilde de vossos súditos, majestade." -O labirinto do Fauno, por Guillermo del Toro.

Em algum momento de minha caminhada com Ana, fizemos o que toda boa sessão de terapia proporciona à pacientes: uma experiência fora da sala. E nessa experiência fomos até o passeio público do centro de Curitiba. Os pais e o irmão menor da paciente acompanharam todo o trajeto e ficamos mais ao fundo do parque. Conversando sobre os enigmas mentais de Ana, enquanto a advertia sobre alguns comportamentos de seu passado, reparei que eu não era mais o centro de sua atenção e corri meus olhos até parar em uma das várias árvores do parque. Perguntei, então, se as fadas estavam lá, e Ana riu com minha inocência.
Ela contou então sobre um ser que via apenas em locais repletos de árvores ou jardins grandes, que despertavam sua criatividade fantasiosa. Ela falou que, além da legião de fadas, também havia um solitário Fauno que vagava pela natureza. Perguntei-lhe como seria este tal fauno, e ela me explicou com os mínimos detalhes: "Ele é como uma árvore velha, vívido e sábio. Tem chifres grandes, escuros, como se fossem galhos, e às vezes sustentam passarinhos coloridos. Um nariz grande e dentes grandes a amarelos, como os de um coelho. Muito pelo, começando na cabeça, na nuca, até as costas e depois por todo o corpo. Mas o peito é quase nu. Ele é forte e tem pernas de bode com cascos grandes, pretos e sujos de terra. É a criatura mais maravilhosa que eu tive o prazer de conhecer." Surpreso, perguntei quando este ser havia surgido, e Ana contou sua história. Assim, descobri que o fauno foi mais uma criação da mente fértil de Ana para suportar sentimentos acumulados ao longo dos anos, desde sua infância até dias atuais. Ela diz que todos os seres que vê, tem uma cota de 'amigos'. Os fragmentos falam entre si, as fadas são em várias, os duendes também, as alucinações humanoides também tem variações, até os passarinhos coloridos tem amigos, mas o fauno não. Ele é quieto, solitário e melancólico. Ele é uma criatura envelhecida, como Ana mesmo disse, ele tem milhares de anos. O fauno solitário é a junção de todos os pensamentos e memórias de Ana em que ela esteve sozinha e perdida. Perguntei qual o motivo dele ser um fauno, e não uma alucinação como Senhor Medo ou Rebecca, e Ana comentou que quando criança, logo após o tio ser pego pelos abusos e ela ficar completamente sozinha, ela ganhou um livro de uma professora chamado: "Contos e Lendas da Mitologia", e seu capítulo favorito era o dos faunos e centauros. Ela comentou sobre o, talvez, filho de Zeus, Pã, Deus dos bosques, que tinha torso de homem e pernas de bode, que se apaixonou por uma ninfa, que, ao rejeitar seu amor, transformou-se em um bambu. Ela disse que fora desta lenda que surgiu a Flauta de Pã. Pois o Fauno havia juntado os bambus, e dado o nome de sua amada Ninfa, em sua honra. Ela disse que o Fauno representava a natureza, o universo e a vida dos seres que habitam entre as árvores.
Mediante à explicação, perguntei para Ana, porque seu fauno era tão solitário. Ela comentou: "Estive muito sozinha, por longos meses, longos anos. Correndo atrás do amor que não sentia, assim como Pã corria atrás de sua Ninfa, que o deixou para virar um bambu. Eu poderia ter transformado tanta dor em música também, assim como Pã, mas minha mente achou mais fácil criar um próprio fauno para carregar minhas dores. Os faunos, mesmo com aparência grotesca, são seres dignos e fascinantes, sábios e ricos de muitos dons. Mas, por exatamente serem seres tão racionais e sábios, carregavam o peso da natureza. Nas lendas vemos a natureza e o universo como algo belo e sagrado, bonito e esplêndido, mas isso varia de onde se encontra cada ser. Minha natureza era morta e infértil, nada sobrevivia nela, e mesmo assim eu precisava de alguém para cuidar do pouco de vida que me restava. E quem melhor para cuidar da minha natureza, se não o Deus dela?"
O fauno solitário de Ana não é um ser que a faça mal, seja agressivo ou auto destrutivo. Ele também não é uma personalidade, apenas uma alucinação não fixa. Ana diz que o vê apenas em locais que façam associações com o Fauno: bosques, parques, jardins grandes ou florestas. Então ele não surge dentro de sua casa e sua sala de aula, mesmo que ela o veja muitas vezes no jardim do colégio, que tem muitas árvores e um vasto gramado.
Ana comenta que, por muitas vezes, quando morava em sua casa antiga que ficava atrás de um bosque que foi tomado pelas árvores, ouvia além dos sons das cigarras e grilos, o som alto e grave de uma flauta, e ela corria para a janela, tendo visão dos topos das árvores e postes de luz. Ela diz: "Eu sei que é tudo coisa da minha cabeça, mas às vezes gosto de pensar que não. Que faço parte de um mundo mágico, repleto de seres que só eu posso ver pois sou a única digna, ou sou alguma princesa perdida, filha de algum Deus da mitologia, ou de alguma ninfa que teve medo de me criar pois eu era humana demais e ela seria castigada por ter fornicado com um homem do mundo real. Eu não me importo de tudo isso ser mentira, não há nada mais belo do que ver um fauno tocar suas dores e amores em uma flauta velha de bambu."
Tenho em vista que este post não é tão grande quanto os outros, talvez seja o menor de todos os que ainda estão por vir. Mas para termos noção da mente de Ana e da gravidade da esquizofrenia, é importante sabermos de todos os seres de suas alucinações. Ana teve a grande sorte de ter sido uma criança apaixonada por livros de fantasia, caso contrário, tenho a total certeza de que seus seres não seriam tão fantásticos e bonitos.
Tudo ao redor da vida de um doente, influencia em sua doença. Esquizofrenia não é diferente. As alucinações e delírios são influenciados por situações do dia-a-dia, do passado e do presente. Tudo pode ser um fator para o desenvolvimentos de mais alucinações e mais seres, e não é diferente com Ana. Por isso, ao conviver com um portador da doença, é importante saber o limite do que pode ser mostrado à ele. Tudo que carregue um ar fantasioso ou horroroso pode, sim, contribuir para as alucinações. Não é certo que pacientes com um nível de disfunção mental do gênero tenham liberdade para ver o que querem, ouvir o que querem ou lerem qualquer coisa. Não importa a idade, é sempre bom estar de olho nos conteúdos ingeridos pelo paciente. Filmes de horror ou cenas traumáticas podem influenciar na gravidade da doença. Estejamos em alerta, em cuidado constante. Uma vida leve, com conteúdos mansos, que serão ingeridos para acrescentar no bom, e não no mau, desenvolvimento são sempre bem vindos.
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